O problema da hipertrofia da motivação (positividade tóxica) e os concursos: a César o que é de César!

By | junho 06, 2021 3 comments





De início, que fique claro: é melhor ter motivação do que não ter. Afinal, com a motivação, a ação se torna mais intensa e fluída. Além disso, a motivação ostenta um potencial emancipador que não pode ser, de forma alguma, ignorado. O ato de se espelhar, emular, tem papel pedagógico relevante na infância e na vida adulta.

Nesse sentido, contemplar uma história de superação ou uma frase de efeito no momento certo pode nos ajudar. Quintiliano, no século I d.C., já especulava: "acaso um bom discurso não reanima com frequência os espíritos amedrontados dos soldados e, perante tantos perigos, não convence os que vão combater de que a glória é mais valiosa que a vida?". No entanto, a seleção brasileira, durante o hino nacional, parecia bem motivada no dia do 7 a 1. Por outro lado, pessoas absolutamente desacreditadas em si já conseguiram resultados notáveis: na Batalha de Carras, um contingente de menos de 10 mil homens, sem muita esperança, venceu os mais de 40 mil homens do poderoso exército Romano, liderado por M. Crasso. 

Ou seja: embora a motivação eleve a nossa potência de ação, ela não é indispensável para obter o resultado e nem indicativo seguro de que o resultado virá. Em excesso, aliás, segundo Aristóteles na Retórica, a motivação sai do degrau de coragem para os degraus da imprudência e da audácia, que já não são uma virtude, assim como a covardia, noutro extremo, é um vício. Deixamos, em qualquer dos extremos, de enxergar problemas reais e efetivamente encará-los.

No mundo dos concursos - e fora dele -, há, de certa forma, uma hipertrofia do papel da motivação. Um dos marcos mundiais desse fenômeno talvez seja o livro "O Segredo", amplamente difundido, que já defendia que o pensamento é composto por frequências vibratórias que atraem frequenciais similares. De forma simplória: desejando e mentalizando (ou, diriam alguns, falando para si as frases certas), conseguiríamos alçar os voos sonhados. É o que alguns até chamam de "psicologia positiva", que se fortalece na década de 90 e ganha contornos também fora dela, tal como sucede com os coachings, que, em diferentes contextos, se valem de neologismos com "mindset" e "gatilhos".

O que quero destacar, porém, é que a motivação, quando enaltecida demais, pode produzir uma simplificação grosseira e prejudicial. Isso porque a hipertrofia da motivação, quando sem evidências, ignora, por ex., fatores estruturais e barreiras culturais, como se tudo fosse uma mera tabula rasa, a depender, quase que exclusivamente, de uma vontade exuberante para o êxito. Ad absurdum, se um argentino quisesse ser presidente do Brasil, todo contraponto, inclusive barreiras constitucionais, seria “uma desculpa criada pela mente”, afinal, "quem quer sinceramente algo corre atrás".

A metáfora acima é exagerada para ser mais didática, mas, em maior ou menor medida, a estrutura de raciocínio subjacente, simplificada demais, é que quero enfatizar. Nesse extremo, a sociologia sequer tem objeto, porque tudo se limita ao eu, à liberdade, ao mundo atual e ao desejado. Sucede que, para além desse solipsismo exagerado, o ser humano o é dentro de certas condições e circunstâncias únicas e irrepetíveis. A motivação, conquanto dispensável, é apenas um dos possíveis pilares da boa ação.

Imaginemos agora uma pessoa com quadro depressivo na prova oral e repleta de dissonâncias cognitivas que a paralisam: pensa que vai ser desmascarada ("serei uma catástrofe"), faz comparações injustas ("todos são melhores que eu") e ostenta forte tendência de ruminação ("como eu não acertei isso? Que vergonha!"). A depender do quadro de ingerência dessas estruturas de pensamento com baixo grau de evidência, tudo isso pode produzir congelamentos de raciocínio ("efeito freeze"): informações amplamente consolidadas, como aquela sobre a teoria da desconsideração da personalidade adotada pelo CC, não são acessadas e verbalizadas. Nesse quadro, uma frase de efeito ("ninguém chega até aqui de paraquedas"), embora possa ajudar e elevar pontualmente o espírito de alguém, pode estar longe do suficiente e necessário para outras pessoas. Não terá muitas vezes o condão de fazer o contraponto necessário diante de algo que tem raízes psicológicas muito mais profundas.

Com isso quero dizer que questões psicológicas sérias não podem ser tratadas com base em meras frases prontas e sem a devida expertise profissional. Se isso fosse suficiente, a depressão seria resolvida pura e simplesmente com frases prontas e positivas. Sem entrar no mérito dessa simplificação, a César o que é de César: um problema de psicologia é um problema da psicologia.

Vejo, porém, que muitas pessoas que buscam confiança nos estudos para concursos se socorrem de coachings e mentores, quando, na verdade, o profissional que poderá mais ajudar, a depender do caso, será o psicólogo. Ter uma “muleta de luxo” (um aprovado repleto de frases positivas) não atacará algo, em verdade, "mais estrutural". E, não custa dizer, o fato de ser aprovado não transforma ninguém, automaticamente, em docente e em entendedor de todas as coisas: de psicologia à oratória. Novamente: a César o que é de César.

Há um vídeo explicativo bem interessante do “Minutos Psíquicos” no YouTube, canal sobre psicologia, acerca da "positividade tóxica", segundo o qual, diferentemente do que propaga essa positividade exagerada, "as emoções negativas são essenciais para o nosso bem-estar". O exemplo dado no vídeo é a raiva: ignorá-la diante de um ato injusto, contemplando-o "sob o lado superpositivo", pode contribuir para que essa injustiça se perpetue ou se agrave, de modo que, segundo estudos, a positividade tóxica pode estimular a pessoa a se sentir pior em longo prazo (como ilustra a atitude de fugir constantemente do problema ou das causas reais). E, vale registrar, como bem destaca o vídeo, o “otimismo” não se confunde com essa “positividade tóxica”: a ausência absoluta de otimismo pode favorecer a criação de quadros depressivos. O desafio é procurar o meio termo, o mesótes de Aristóteles: entre o excesso e a escassez. 

Os efeitos dessa tendência de enxergar qualquer "negatividade como ruim" no meio concurseiro são visíveis. Partindo desse viés de “superpositividade”, deixar de fazer concursos é, pura e simplesmente, um eloquente sinal de fracasso pessoal, já que “tudo depende de nós mesmos". Aprisionam-se, assim, as pessoas no "viés dos custos perdidos" (sunk costs): se tempo e/ou dinheiro foram gastos, não se pode mudar de rota, porquanto "só não passa quem desiste" e "desistir não é uma opção". A vitória, nesse sentido, coloca-se como inexorável para quem persiste. 

Conheço várias pessoas que carregam forte culpa por deixar os concursos para trás, convivendo com a pecha simplificadora e binária: se não venceram, fracassaram. Não importam as causas. E muitas delas tiveram que se acostumar a escutar exemplos quase que mitológicos, como o de Ulisses, de uma exceção motivadora.Afinal, na era (também) do storytelling, uma fábula vale mais do que o enfrentamento das complexas variáveis em sua raiz: tempo, idade, família, filhos, trabalho, distância, renda e opções factíveis. Essas variáveis são sempre pessoais, únicas e irrepetíveis, não sendo, à evidência, solucionáveis em uma simples caixinha de perguntas de rede social.

De conseguinte, cria-se uma fábrica de frustração, ansiedade e depressão, mas invisibilizada com diversas frases de efeito, muitas das quais bem-intencionadas, que colocam a motivação em um pedestal perigoso e sufocante. Motivação, na dose certa, sim. Como condição necessária da ação e com exageros, todavia, já se torna algo problemático. Para ler empresarial, como costumo lembrar, a motivação é uma exceção mesmo entre os aprovados nos concursos mais difíceis. Tanto é assim que, assim como em qualquer trabalho, a execução da atividade e a pontualidade muitas vezes se dão por obrigação e receio de sanção, mesmo diante do desânimo. 

Nesse panorama, não é segredo para ninguém que há um mercado para saciar uma grande demanda, composto, em grande parte, por fornecedores sem expertise em psicologia e que se assentam precipuamente na hipertrofia da motivação e no enaltecimento da própria experiência libertadora. Por isso, digo e repito: ao coaching o que é do coaching; à psicologia o que é da psicologia; e a César o que é de César. Que ataquemos as causas, nos concursos e na vida, com os remédios certos, motivados ou não! 

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3 comentários:

  1. Que texto, palmas...
    Sempre falei isso, muitas pessoas, as vezes, só precisam cuidar mais da mente, com psicólogos, ao inves de contratar os "especialistas em concursos".

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