Fases do concurso - Prova subjetiva - parte 4 - A minha prova dissertativa no TJSP 187 e a quantidade de informações

By | agosto 15, 2019 2 comments


A fim de ilustrar o tema do post passado (a respeito da escrever o máximo que puder), trago aqui a minha resposta na prova dissertativa do TJSP sobre teoria da constituição, que foi aplicada no 2º semestre de 2017 (concurso 187), na qual tive a enorme felicidade de obter a nota máxima. Logo abaixo, a resposta pode ser baixada na versão original ou pode ser lida a partir da transcrição, com o enunciado da questão.

Quem acompanhou o concurso de n.º 187 sabe que o fio condutor para a aprovação foi a resolução da questão dissertativa. Nas 4 horas, tinha que fazer 4 questões (cada uma valia 1,5 pontos e contava com duas páginas de resposta, com 30 linhas pautadas) e uma dissertação (valendo 4 pontos, com seis páginas de resposta). O examinador da dissertativa foi bem rigoroso, de modo que, não obtendo pontuação razoável na dissertação (por ex.: 60% dos pontos), ficava difícil de “recuperar” nas demais questões. Primeiro porque examinador em prova subjetiva não tem costume de dar nota alta. Segundo pelo fato de que, gastando tempo na dissertação, seria difícil de responder com muitos detalhes as demais questões.

Na minha prova, eu escrevi todas as 6 laudas disponibilizadas da dissertativa. Se existissem 7 laudas, escreveria todas as 7. Eu escolhi não correr risco de perder no “juízo comparativo” na questão com maior valor. Não estou dizendo que quem escreve 4 ou 5 folhas das 6 não tem chance. É inegável, porém, que, ceteri paribus, fica mais vulnerável em comparação com quem exauriu as folhas. Depois de finalizada a dissertativa (levei 2 horas, ou seja, metade da prova), usei o tempo restante para fazer as demais.

Assim, escrevi as duas laudas na mais fácil; na seguinte, uma lauda e meia; na terceira, uma lauda; na quarta, com apenas 10 minutos restantes, meia lauda (minha pior nota). Não havia mais tempo. Tinha condições de obter pontuação maior nas últimas, mas a estratégia de sacrificar o tempo na dissertativa (na qual tirei nota máxima) impossibilitou desenvolver mais. Da dissertativa em diante precisava de 2 pontos de 6 possíveis nas questões para adentrar na fase de correção das sentenças.



Enunciado da questão dissertativa:

Disserte sobre o tema –Neoconstitucionalismo, direitos fundamentais e igualdade –justificando todos os tópicos desta proposta, considerando:
1.Teoria da Constituição Procedimental e Teoria da Constituição Dirigente:
1.1.Positivismo, pós-positivismo e sistema constitucional aberto:
1.1.1.Normas-regra (preceituais);
1.1.2.Normas-princípio (axiológicas).
2.O devido processo legal material e os direitos fundamentais: a limitação da discricionariedade legislativa;
3.As novas dimensões da igualdade:
3.1.Ações afirmativas e discriminações benignas;
3.2.O Juiz, a igualdade e as promessas não cumpridas da Constituição Federal (as normas-fim do Estado Democrático e Social do Direito e a dimensão ético-humanista da função jurisdicional).
Obs: No desenvolvimento da dissertação, o candidato deverá levar em consideração rigorosamente os itens e subitens, de acordo com a ordem proposta.

Minha resposta original: 
https://drive.google.com/open?id=1Iwdmxf7CHIu5k4HoLKdoiWOnmBYv1pvz

Minha resposta transcrita:

Para a análise do papel da Constituição na sociedade moderna, faz-se mister contextualizar o tema historicamente, desde o advento do positivismo jurídico.

Antes da Revolução Francesa, o Estado Absolutista era caracterizado pela concessão de privilégios ao clero e à nobreza, em detrimento da burguesia. O poder fundava-se no caráter divino do rei, o que deixava o povo à mercê do processo político. Nesse contexto, surgiu o iluminismo, que advogava pela limitação dos poderes, como ilustra a teoria da tripartição de poderes de Montesquieu, e pela existência de certos direitos inalienáveis, aos quais o poder constituído deveria curvar-se. Sièyes, a respeito do tema, defendia que o Terceiro Estado, composto pela burguesia, era a verdadeira fonte do poder, secularizando, desse medo, a legitimidade da heteronomia, isto é, do próprio poder do Estado de impor normas a terceiros.

Daí seguiu uma formulação rígida de separação de poderes, dando início ao positivismo jurídico, em seu viés exegético, de acordo com o qual o papel do juiz – visto com desconfiança, sobretudo na França -  era de mera boca da lei, não lhe sendo autorizado corrigir o produto legislativo, que adveio dos representantes do povo, em homenagem ao princípio democrático.

Na mesma toada, em prol da segurança jurídica, podem ser destacados o pandectismo, que buscava depurar conceitualmente o direito romano, e a Escola História do Direito, cujo principal expoente, Savigny, defendia que a busca do “espírito do povo” deveria ser norteada por quatro rígidos cânones: gramatical (sentido literal), lógico (compatibilidade de premissas), histórico (exortação da interpretação subjetiva, centrada na intenção do legislador) e sistemático (apreço pela unidade, coerência e completude). Logo, o critério teleológico, que, em última análise, possibilita a adequação das leis aos fatos e aos valores, não tinha guarida na hermenêutica jurídica então reinante, tanto que o citado cânone só veio a ser proposta ulteriormente, no âmbito da Jurisprudência dos Conceitos da Ihering, no final do século XIX.

Sucede, todavia, que a própria ideia rígida de separação de poderes e de neutralidade judicial foi profundamente questionada. Ainda no Século XIX, Julius H. Von Kirchmann negava o caráter científico do direito, ante a mutabilidade do seu objeto, o que não se coaduna[va] com a ideia de que, para ser ciência nos moldes cartesianos e da filosofia da consciência, é imperiosa a presença de método e objeto próprios. Paralelamente a isso, Karl Marx, baseando-se em Hegel, propôs a tese de que a dinâmica histórica é guiada pelo materialismo dialético, no qual a luta entre as classes exploradas e dominantes culminará, de forma escatológica, com a ditadura do proletariado. Para o marxismo, o Direito é mera superestrutura, determinada pelos influxos da infraestrutura econômica, sendo, pois, mecanismo de proteção do capital e da exploração das massas trabalhadoras. Ademais, a Escola do Direito Livre de Ehrlich, para a qual o direito, lacuno[so] necessariamente, deve ser colmatado pelos anseios populares, bem como a Livre Investigação do Direito, idealizada por Geny, são manifestações da superação do papel passivo do Poder Judiciário e da Constituição. Por fim, ainda vale destacar a teoria Realista de Oliver Holmes, para quem a história do direito – e não a lógica – é adequada para a compreensão do fenômeno jurídico, tal como ilustra a “Era de Lochner” nas primeiras décadas do Sec. XX na Suprema Corte Americana, ocasião em que a ideologia liberal justificou ampla hipertrofia da interpretação do “direito de propriedade” e do “devido processo legal”, de modo a tolher o desenvolvimento do Estado Social até o “New Deal”, quando Roosevelt criticou, severamente, o ativismo ideológico da Corte.

Após a superação da ideia do homem como “máquina de subsunção”, o próprio positivismo jurídico, como resposta, passou a reconhecer certa discricionariedade, malgrado limitada, do operador do Direito. Por um lado, Kelsen defendia que o juiz era livre dentro de uma “moldura”, cujos limites poderiam ser fixados, mediante ato de conhecimento, pela Ciência do Direito. Por outro lado, Hart perfilhava do entendimento de que, em casos difíceis – situados na “zona de penumbra” –, o juiz estaria livre. Tais ideias, porém, sofrem forte abalo com o advento da Segunda Guerra Mundial e do subsequente pós positivismo, oportunidade em que foram firmados os alicerces para a compreensão do Neoconstitucionalismo e o novo papel da Constituição: a revolução kantiana na moral e o giro linguístico na teoria do conhecimento.

A revolução kantiana diz respeito à reintrodução da razão prática e moral na argumentação. Com efeito, antes da Segunda Guerra Mundial, a metafísica não tinha mais espaço para legitimar uma ordem jurídica em meio à heterogeneidade moral, política e econômica. As barbaridades da guerra, todavia, deram a possibilidade de a moral ter papel, novamente, na racionalidade moderna, tanto que a teoria do “véu da ignorância” de Ralws (que propõe um ambiente comunicativo e epistemológico ideais para as deliberações morais, à luz da neutralização das posições individuais) e a “teoria do agir comunicativo” de Habermas (que introduz como ideal o consenso deliberativo) ganharam considerável difusão teórica.

Por sua vez, o giro linguístico trouxe uma revolução na epistemologia: saiu-se de uma filosofia da consciência para a filosofia da linguagem. Na feição analítica inglesa, o giro linguístico é atribuído ao “primeiro” Wittgenstein, em cujo tratado afirmou que os limites do mundo são os limites da linguagem. No viés continental, destacam-se Heidegger e Gadamer, para os quais a linguagem, antes de instrumento, é a própria forma de constituir a realidade: o sujeito, munido da pré-compreensão, dialoga com o texto, formulando a “fusão de horizontes” característica do “círculo ou espiral hermenêutica”, que é sempre histórica, contextual e dialética.

Tais mudanças de paradigmas viabilizaram a reinserção da argumentação como elemento do Direito, valendo destacar a ideia de aceitabilidade do auditório universal de Perelman e de correção moral da argumentação de Robert Alexy. De igual modo, o raciocínio tópico – guiado por problemas, não sistemas – trouxe consigo a proposta de “sistema aberto”, como ilustra a “Tópica e Jurisprudência” de Theodor Viehweg.

Firmadas tais premissas históricas, é importante pontuar que o novo cenário em que o direito está imerso não é unívoco, havendo propostas contrárias, sobretudo no que tange à Teoria da Constituição, ao papel do Juiz, aos limites da discricionariedade legislativa e às novas dimensões da igualdade.

No que tange à Teoria da Constituição Procedimental e à Teoria da Constituição Dirigente, trata-se de posições discutidas no âmbito da filosofia política, ao lado do: liberalismo igualitário de Rawls e Dworkin, que defendem os direitos de primeira dimensão no âmbito das liberdades públicas e, nos direitos sociais, e mínimo necessário para a própria fruição real da democracia; comunitarismo, que critica a mistificação da liberdade do sujeito e do “rational choice”, em detrimento dos valores comuns; libertarianismo de Nozik e Hayek, o qual advoga pelo Estado Mínimo; interpretativistas ou originalistas, segundo os quais o Judiciário tem déficit democrático, não lhe cabendo redesenhar, de forma patriarcalista, o produto democrático; dentre outros.

A teoria da Constituição Procedimental entende que a saturação dos conteúdos das normas constitucionais deve ser deixada para o próprio processo democrático, cabendo ao Judiciário apenas proteger e funcionamento da democracia e minorias. Assim sendo, advoga por “autocontenção” judicial em matérias sensíveis, em razão do déficit democrático e da ligação do papel contramajoritário. Por seu turno, a Teoria da Constituição Dirigente, idealizada por Canotilho, entende que a Força Normativa da Constituição vincula o legislador a certas pautas, tanto da atuação (vedação da proteção insuficiente – untermassverbot) quanto da contenção (proibição de excesso – ubermassverbot). De conseguinte, a Constituição deixa de ter mero papel de norma reguladora de produção de outras normas, passando a impor, de forma coercitiva, um plano estatal, como evidencia o art. 3º da Constituição Federal.

Em ambos os casos – Teoria da Constituição Procedimental e Teoria da Constituição Dirigente -, a Constituição não é mero elemento retórico, destinado apenas à inspiração política do legislador: vincula, em certa medida, todos, inclusive na regulação privada (eficácia horizontal dos direitos fundamentais). Inserem-se no contexto de superação do papel passivo do Judiciário, na antiga ótica rígida de separação dos poderes, em prol de sistema aberto, guiado por “topoi” (lugares-comuns), argumentação moral e pretensão de correção do direito. À guisa de exemplo, o STF, na ADPF n.º 45, entendeu que a reserva do possível é inoponível ao mínimo existencial, justamente em razão da densidade normativa do vetor axiológico da dignidade humana.

Nesse panorama, a própria dicotomia entre normas-regras e normas-princípios tem especial relevo para a abertura argumentativa do direito, malgrado a diferenciação entre tais espécies de norma tenha gerado controvérsia teórica. Para Dworkin, as regras são preceituais, aplicando-se ou não aos casos, ao passo que os princípios têm “dimensão de peso”, de maneira a afastar a “discricionariedade judicial” pensada por Hart. Para Alexy, as regras são mandados de realização, enquanto os princípios são mandados de otimização, que têm o papel normativo de dar unidade axiológica ao sistema. Em todo caso, independente da vertente teórica, não se pode negar hoje o caráter normativo dos princípios, os quais, em caso de conflito, devem ser ponderados, preservando o núcleo essencial de cada um à luz da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, diferentemente das regras, cujo conflito é resolvido pelos critérios clássicos de antinomia: hierárquico, cronológico e especialidade.

Diante do caráter vinculante dos princípios, que conferem abertura argumentativa ao sistema, é inegável que o devido processo legal material e os direitos fundamentais impõem limitação da discricionariedade legislativa. Isso porque o devido processo legal, em sua feição material, contém os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, os quais proíbem, a um só tempo, o excesso (ubermassverbot) e a proteção insuficiente (untermassverbot), tal como idealizou, entre outros, a “Jurisprudência dos Valores” do Tribunal Alemão e, no âmbito doutrinário, Canaris. Em razão da limitação da discricionariedade, o Poder Legislativo deve respeitar os direitos fundamentais (ideia de limite, evidenciada sobretudo pelos direitos fundamentais de primeira dimensão), bem como atender aos imperativos de proteção (criando instruções para a proteção dos direitos, que são as chamadas garantias institucionais) e de tutela (solidificando procedimentos e remédios para a eficaz resposta do Estado). Sobre o tema, a Corte Interamericana de Direitos Humanos adota a “Doutrina Velasquez”, segundo o qual mesmos os direitos de 1ª dimensão, normalmente associados à abstenção estatal, exigem tutela legal, como exemplifica a exigência da Comissão Interamericana de  proteção à mulher no “Caso Maria da Penha”, que motivou a criação da Lei n.º 11.340/06.

A releitura dos institutos, promovida pela eficácia objetiva dos direitos fundamentais, alcançou o princípio da igualdade. Inicialmente, o princípio da igualdade só tinha feição formal, de igualdade perante a lei, o que, em outras palavras, significava o fim dos privilégios do Clero e Nobreza. Com o marxismo e o Estado Social (v.g., Constituição de 1917 do México e de 1919 da Alemanha), a igualdade passou a ser compreendida sob viés material: tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais, como já tinha pensado Aristóteles na “Justiça Distributiva”, o que fundamenta a tutela de direitos sociais (ADPF n.º 45, já citada). Mais recentemente, Boaventura de Souza Santos trouxe a terceira dimensão da igualdade, como direito ao reconhecimento, na célebre frase: “tenho direito de ser tratado igualmente quando a igualdade nos diferencia; tenho direito de ser tratado desigualmente quando a igualdade nos invisibiliza”. Essa nova dimensão faz com que a igualdade não seja mera proscrição de violência (“discrimination against”), mas também imperativo de reconhecimento (“discrimination between”), desde que haja fundamentação razoável para o discrimen e adequado, como há proteção do mercado da mulher (art. 7º, XX, CF), reserva de cargo a deficiente (art. 37, VIII, CF) e sistema de cotas, que são ações afirmativas, ou seja, discriminações benignas (imperativo de proteção).

Por derradeiro, diante desse arcabouço teórico, histórico e normativo, o papel do juiz diante das promessas não cumpridas da Constituição Federal é superar [a] visão liberal e rígida de separação de poderes, reconhecendo o caráter vinculante de toda a Constituição Federal, inclusive no seu viés substancialista e dirigente (art. 3º da CF), de maneira a concretizar as promessas emancipatórias do neoconstitucionalismo, nos aspectos individual e social, tendo em conta o imperativo ético-humanista de utilizar a representatividade argumentativa – inerente ao Judiciário – como instrumento de democracia real, cuja concretização não se realiza a partir da mera enumeração de direitos em lei.



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