O texto hoje é da trajetória da amiga Gabriela, juíza do TJSP. Há muitas barreiras nos concursos. Algumas visíveis, como volume de matéria, dificuldade com método, tempo e questão financeira. Outras invisíveis, mas profundamente intensas. A Gabriela, enquanto mulher negra, conta muito bem como as barreiras invisíveis pesaram muito mais na trajetória. Não havia texto melhor para postar na semana do dia internacional da mulher. Certamente, Gabriela, assim como o livro do Lázaro Ramos te abriu horizontes, a sua trajetória irá motivar muita gente! Obrigado pelo emocionante relato e por ser essa pessoa incrível!
Minha trajetória nos concursos até atingir o cargo que eu sempre sonhei foi ao mesmo tempo longa e muito curta. Passei no primeiro concurso da magistratura que eu prestei. Melhor dizendo, passei no primeiro concurso da magistratura que eu tive coragem de prestar.
Eu sempre quis ser juíza e entrei na universidade com esse objetivo. Mas a realidade tempera a vida da gente com decepções e frustrações que, de pitada em pitada, vão tirando os horizontes que a gente um dia ousou sonhar. Pelo menos, pra mim, foi assim. Eu era uma das poucas alunas negras da minha sala (só me lembro de outros que eram intercambistas), morava mais distante do prédio da universidade e a dinâmica familiar não me permitia o conforto de não poder trabalhar. Pra muitos, o que eu falo não vai fazer sentido, mas é sobre isso que eu queria falar. Eu passei a não me ver como juíza.
Eu nunca me vi representada e também não é assim que eu era vista: então, pra quê eu deveria tentar. A vida tem formas sutis de te dizer não, e o mundo em minha volta foi a maior negativa que eu tive: preto não pode ser juiz. Não quero fazer desse relato um discurso social, mas é o único relato que eu acho válido a ser feito por mim. Os métodos de estudo, nesse meu cenário (e acredito que seja o cenário de muitos) era o que menos me atrapalhava em seguir, a certeza do não pertencimento era o muro que, com livro nenhum, eu conseguiria superar.
Eu acreditei nesse "não" que me foi dito e nunca tive coragem de prestar concurso para magistratura ou qualquer outra carreira mais bem remunerada ou disputada. Cargos de analista, técnico ou escrevente eu fiz quase todos. Eu tinha fracassos semanais: seja com pontuações baixas ou com confusões de concursos mal organizados. Assim, eu permaneci no cargo do primeiro concurso que eu prestei no TJMG, com esse "não" em forma de nó preso na garganta. Um dia, lendo o livro "Na minha pele" do Lázaro Ramos, eu li a seguinte frase: "Por isso digo aos meninos e meninas que têm a origem parecida com a minha: não existe vida com limite pré-estabelecido; o seu lugar é aquele em que você sonha estar". Ao ler isso, o nó virou corredeira e não tinha mais nada que eu pudesse fazer pra conter essa vontade que eu tinha de pertencer, de me ver no lugar em que eu sempre quis ocupar.
Então, eu guardei meus fracassos debaixo do braço, não contei a quase ninguém e me inscrevi no concurso do TJSP. Eu estabeleci planilhas de estudo e dividia a quantidade de páginas que teria que ler por dia, considerando as datas das provas e as poucas horas livre que eu tinha. Tirei carteira de moto e comprei uma que me permitia chegar mais cedo em casa já que carro não era uma opção. Eu me permiti sonhar de novo e nada ia me impedir de chegar lá. E assim, eu fui passando em cada etapa, com muitas privações financeiras e emocionais. Na fase da inscrição definitiva fui eliminada pois a banca entendeu que meu cargo no TJMG não demandava conhecimento jurídico. Mas eu já não enxergava limites e não podia parar mais. Chorei por um dia inteiro. No dia seguinte, aumentei minha dívida e por meio de uma advogada consegui minha inclusão na prova por um PCA no CNJ. Eu queria apenas que eles me vissem, me ouvissem, me deixassem pertencer. E assim foi: passei. Vi meu nome na lista do cargo que um dia eu deixei de ter coragem de sonhar.
Eu queria apenas deixar essa mensagem a quem recebe "nãos" da vida por questões que vão além das notas e reprovações. O "não" da melanina que não é vista nos cargos de poder, da família que implica e desacredita do empenho de anos e anos e que não tem fim; o "não" da idade que já é alta demais; o "não" dos filhos que demandam tempo e atenção, enfim, o não da vida que não caminha no ritmo da nossa ansiedade e anseio. Espero que você não aceite esse "não". Reveja suas estratégias e permaneça saudável, mas acredite naquilo que você ousou sonhar. Não há limites nessa vida. Sonhe e ocupe o lugar que você quer estar!
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